segunda-feira, 26 de julho de 2010

experiência de escrita 1

Por estes dias, apeteceu-me tentar escrever um conto. Apesar de saber como termina, não sei que caminhos há-de trilhar. E começa assim:

Acordo.
Olho para o lado da cama e vejo a ausência, recortada na dúbia presença de duplo sentido, da causalidade sem nexo nem alma.
Era mesmo esta sensação que me faltava ao acordar – a do negro desapontamento, a da morna insatisfação da solidão e a consciência do isolamento em que tenho vivido. Sempre.
Mas vamos acordar - levantar é preciso, ainda que sem motivo para o fazer.
A manhã já vai longa e cinzenta. Chove lá fora, aquela chuva miudinha que nos incomoda e nos gela a alma se a aguentarmos por muito tempo. A tristeza instala-se na consciência e fica para o jantar, ou talvez mais, se a deixarmos.
Seguro um cigarro entre os dedos e acendo-o sem o olhar, sem o sentir. Sabe tão bem saboreá-lo, antes de qualquer outra coisa… talvez fume há demasiado tempo, há demasiados anos. Ou décadas. Mas sabe-me sempre como o primeiro. Ou como o último.
O dia de ontem vem-me à memória, renovando a consciência da desilusão e pesar que se liquefaz por entre o fumo que se me escapa entre os dedos.
Dirijo-me para a cozinha e aqueço o café de há três dias, que me serve como num dia qualquer e detenho-me a contemplar a caneca, usada, negra de tão usada, à espera da reforma que lhe nego, uma e outra vez, obrigando-a a cumprir a sua função até ao fim dos seus dias, até ao final dos tempos, até que se queira quebrar. E porque não hoje? Atiro-a contra a parede com força, desfaço-a em mil pedaços, libertando a sensação de uso e de abuso de um objecto que já me deu tudo o que tinha para dar. É melhor sacar de um copo ou coisa do género para beber o café. Começamos mal, mas começamos…
Não tenho nada por que me levantar, ninguém que me aguarde com impaciência, nenhum serviço incompleto que precise de mim e unicamente de mim. Porque o que faço, qualquer um o pode fazer. Pois que o faça, eu não quero saber, fico-me por aqui a contemplar o café morno, bebendo-o, entrecortado pelo fumo cinzento e desiludido.
O dia de ontem passou e com ele qualquer réstia de esperança. Não vale a pena continuar, dei tudo o que tinha para dar, fiz tudo o que havia para fazer, até á exaustão. Já de nada vale a pena, ninguém procurará por mim e me virá perguntar como me sinto ou como me tenho conseguido aguentar. Estou só, como sempre estive, mas desta vez a consciência do facto é mais presente, audível como o silencio gritante que se anuncia por entre as paredes e se dilui pelos eternos minutos do relógio de parede. Atrasado cinco minutos, sempre atrasado cinco minutos, por mais vezes que eu o acerte, lá volta ele ao atraso de cinco minutos, como se aquele fosse o tempo próprio dele e não aquele com que nos controlam a vida.
A vida. O que aconteceu até aqui, todos os momentos de fúria, toda a insanidade dilacerante que se apresentou sem aviso e me fez agir de modo adverso ao normal, ao aceitável?
E o que fiz eu, que poderia ter feito de diferente? Terei agido de modo tresloucado, como uma velha senil, ou demente ou como um epiléptico sem remédio? E como poderia ter agido de outro modo, se não sei, de antemão, a direcção que tomam os meus sentimentos e de onde provém toda a violência que em mim sinto? Como poderia saber como agir a seguir àquele doloroso momento em que vi o que vi, senti o que senti, pensei o impensável, disse o indizível e reagi violentamente, sem apelo nem agravo, sem contemplações fúteis nem escusadas delicadezas?
Sabe-me tão bem o sabor do cigarro. Finalmente algo me dá atenção e se preocupa comigo – uma beata carcomida e sorvida até ao tutano que, a espaços, me vai satisfazendo. O ego...?
Termino o café, apreciando a borra no fundo do copo – ditará o meu futuro, a partir deste momento? Que forma tem esta mancha? Imprecisa e indefinida ou bem marcada e trivial? Meu deus, preciso de outro cigarro, antes que tome consciência desta inutilidade…
Volto para a cama ou ausento-me na contemplação do infinito que não me leva a lado nenhum? Que só me faz dispersar a mente pela vulgaridade dos sentimentos do dia de ontem, pela frieza das criaturas que me rodearam e aguçaram em mim o sentimento de não pertencer a lado nenhum, de ninguém me poder acompanhar pelos enlameados e taciturnos degraus de uma vida sem causa, sem propósito ou companhia.

Vou para o pé da cama, mas detenho-me a contemplar novamente a ausência do outro lado da cama, do que poderia ter sido, se. Se, se, se… Demasiadas condicionantes para um mesmo e único fim.
Foi um pedaço de mim que se dispersou por entre aquelas paredes sem cor e sem brilho. Uma tristeza inaudita, um território nunca encontrado a que pudesse chamar de lar. Tudo o que aconteceu antes levava à mesma conclusão, à mesma evidência, mas evitei encará-la de frente a todo o custo, sem sequer a olhar de cima para ter uma visão global da coisa. Da coisa em si, do acontecimento em espera ou do facto consumado. Tivesse alguma vez pressentido a ventania aziaga que se fazia sentir, e poderia tê-lo evitado, ou assim o quisesse. Talvez tenha caminhado para a destruição conscientemente, despudoradamente. Sem pensar duas vezes, sem ponderar as consequências que agora me fazem sentir assim – imprestável, inábil e corrompida, até ao limite.

(continua aqui)

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